O Superior Tribunal de Justiça (STJ), através da 3ª Turma, em julgamento proferido em 15.10.2024 no REsp 2.151.735, examinou interessante discussão referente à legalidade da cláusula contratual em credenciamento de cartão de crédito. A controvérsia cingiu-se em definir se é abusiva a cláusula contratual, firmada entre lojista e credenciadora de cartão de crédito, imputando ao primeiro o dever de restituir integralmente o valor recebido pela transação financeira caso ela seja objeto de chargeback, definido como o cancelamento de uma venda cujo pagamento foi realizado com cartões de crédito ou débito porque o (I) titular do cartão não reconheceu a compra, ou (II) a transação não obedeceu às regras previstas nos contratos, termos, aditivos e manuais elaborados pelas administradoras de cartões.
Por conseguinte, há o cancelamento do repasse ou estorno do crédito, se já efetuado, pela credenciadora ao lojista. Com a efetivação de uma única compra por meio de cartão de crédito, nascem ao menos três títulos de crédito: um do portador em relação ao emissor, pagável até a data do vencimento da fatura, o segundo do emissor para a credenciador, descontada a taxa de intercâmbio e o terceiro se dá entre o credenciador e o estabelecimento, deduzida a taxa de desconto.
Ao contestar o lançamento em sua fatura, o portador do cartão tem por objetivo a anulação em série desses três recebíveis. A contestação de lançamentos com a retenção de recebíveis (chargeback) é a forma de resolução de conflitos mais comum no comércio eletrônico, sendo o mais acessível e favorável ao consumidor. Com a globalização econômica e utilização transfronteiriça dos meios de pagamento como cartão de crédito, é do interesse dos arranjos de pagamento que as regras sejam o mais uniforme possível entre os países e é comum que as bandeiras se orientem mais pelas regras dos maiores mercados nos quais estão inseridas.
De acordo com a Lei nº 12.865/2013, que instituiu o Sistema Brasileiro de Pagamentos, cabe ao Banco Central regulamentar o sistema e, até o momento, incumbe a cada uma das bandeiras de cartão de crédito regulamentar suas políticas de contestação por lançamentos, sem que haja o estabelecimento de regras mínimas comuns a todos. A contestação de lançamentos possui pontos relevantes em que a evolução se faz necessária, entre os quais ressalta-se a transparência e acesso à informação. Os espaços privados têm que ser respeitados e sua autonomia garantida, não estando, contudo, imunes à eficácia horizontal dos direitos fundamentais. Originalmente, a proteção fornecida pelos direitos fundamentais objetivava a proteção das pessoas naturais contra os arbítrios do Estado.
Com a evolução, as pessoas jurídicas também passaram a poder se abrigar sob esse guarda-chuva e, mais recentemente, a posição doutrinária e jurisprudencial é de que os direitos fundamentais também irradiam seus efeitos nos negócios privados. A teoria da eficácia horizontal dos direitos fundamentais foi inicialmente trazida à jurisprudência brasileira por decisão do Supremo Tribunal Federal, no qual se decidiu que, para uma associação possa excluir um de seus membros, é necessário que se respeite a ampla defesa e o contraditório. Dessa forma, a mesma ampla defesa e o contraditório devem ser garantidos nas contestações de lançamentos. Portanto, à luz do julgamento proferido no REsp 2.151.735, conclui-se que é abusiva a cláusula que prevê a retenção de recebível a partir de simples contestação da compra pelo titular do cartão julgada procedente pelos participantes da relação de arranjos de pagamento.
Tribuna do Norte
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