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terça-feira, 27 de agosto de 2024

Com legislação convidativa e governo conivente, Argentina é rota preferencial de espiões russos


 (Foto: Paulo JC Nogueira/WikiCommons)

“Os filhos dos agentes secretos perguntaram aos pais ontem quem os havia recebido”, disse durante o desembarque o porta-voz do Kremlin Dmitry Peskov, ao relatar que o segredo dos agentes jamais havia sido revelado às crianças. “Eles nem sabiam quem era Putin.”

A cidadania dos jovens foi assegurada pelo princípio lus soli, uma expressão em latim que significa “direito de solo”. A Argentina respeita a regra, que dá aos bebês nascidos no país, mesmo que filhos de estrangeiros, o direito automático à cidadania.

“Qualquer criança nascida em território argentino tem automaticamente direito à cidadania, independentemente da nacionalidade ou do status imigratório de seus pais. Assim, uma criança nascida na Argentina possui o direito inato à cidadania argentina”, explicou à reportagem de A Referência o advogado Daniel Ângelo Luiz da Silva, do escritório Galvão & Silva Advocacia.

Há benefícios também para os pais, que ganham acesso a um atalho para eventual obtenção da cidadania. “O processo é facilitado pelo fato de o filho ser cidadão argentino. Após a solicitação e análise, os pais geralmente conseguem a residência permanente”, diz o mesmo advogado. “Os pais podem requerer a nacionalidade imediatamente após a obtenção do certificado de residência”, acrescenta.

A partir dali, novas perspectivas se abrem. Por exemplo, a de obter um visto para os EUA com duração de dez anos através dos consulados norte-americanos na Argentina. Ou de seguir livremente rumo à Europa, já que atualmente os argentinos entram no Espaço Schengen sem necessidade de visto. Em breve, serão beneficiados pelo ETIAS (Sistema Europeu de Informação e Autorização de Viagem), um mecanismo eletrônico que deve entrar em vigor em 2025 e servirá para reforçar as fronteiras externas europeias.

“A América do Sul é usada principalmente pela inteligência militar russa para organizar o trabalho de agentes adormecidos. É improvável que todas as pessoas que vieram da Rússia para a Argentina para obter uma autorização de residência estejam envolvidas em inteligência”, diz artigo publicado em fevereiro de 2023 pelo Instituto Robert Lansing para Estudos sobre Ameaças Globais e Democracias. “Cerca de 2%, no entanto, provavelmente estão envolvidas. A mídia social russa lançou uma campanha promocional para realocação para a Argentina para mascarar esse canal de inteligência russo.”

No caso de Dultsev e Dultseva, a oportunidade de residência na Argentina foi aproveitada após o nascimento dos filhos, argentinos legítimos. Mas não a da cidadania. Ambos optaram por documentos falsos e mudaram seus nomes, a ponto de os próprios filhos não terem conhecimento da nacionalidade russa dos pais.

Então identificados falsamente como Ludwig e María, os dois agentes russos foram detidos com passaportes irregulares na Eslovênia em 2022, de acordo com a agência Associated Press (AP). E somente após a troca de prisioneiros reassumiram suas identidades verdadeiras, revelando aos filhos, enfim, a origem da família.

Brasil, uma incubadora de espiões

Na Argentina, o casal parece ter explorado a mesma fragilidade burocrática que fez do Brasil uma incubadora de espiões. Têm-se acumulado os casos de agentes russos detidos mundo afora sob falsas identidades brasileiras.

Um deles inclusive protagonizou a mesma troca de presos que beneficiou o casal de “argentinos”. Trata-se de Mikhail Mikushin, um coronel do GRU, o serviço russo de inteligência militar, preso em 2022 na Noruega como José Assis Giammaria, falso brasileiro e pesquisador autofinanciado que atuava em um projeto de segurança conduzido por uma universidade do país escandinavo.

O caso mais famoso, entretanto, é o de Sergey Vladimirovich Cherkasov, um espião russo que hoje cumpre pena em Brasília. Ele foi detido em abril de 2022 no aeroporto de Guarulhos, em São Paulo, usando a identidade de Victor Muller Ferreira.

O terceiro caso conhecido é o de Gerhard Daniel Campos Wittich, supostamente um brasileiro de ascendência austríaca que vivia no Rio de Janeiro e desapareceu durante uma viagem à Malásia em janeiro de 2023. Ele foi desmascarado na Grécia pela inteligência local, que o identificou como um agente russo de sobrenome Shmyrev, segundo o jornal britânico The Guardian.

Governos coniventes

Em setembro do ano passado, a reportagem de A Referência ouviu funcionários de cartórios brasileiros e um delegado de São Paulo que apontaram uma série de caminhos possíveis para se obter uma identidade falsa capaz de enganar as forças de segurança do Brasil. Possivelmente o que permitiu a Cherkasov e Mikushin se tornarem, respectivamente, Victor e José.

No entanto, há outra explicação para a preferência dos russos por países latino-americanos como Brasil e Argentina: a conivência dos governos locais. “A América Latina continua, como era na Guerra Fria, um trampolim para espiões russos que vão bisbilhotar os Estados Unidos e a Europa”, disse em setembro de 2023 a revista The Economist.

A publicação diz que os países latino-americanos assumiram um papel que antes cabia ao Canadá, por onde muitos agentes russos costumavam transitar ante de chegar a seus destinos finais.

O professor Kevin Riehle, da Universidade Brunel, em Londres, que passou grande parte da carreira como analista de contrainteligência no FBI, a polícia federal dos EUA, diz que o Canadá se “envergonhou” tanto com a situação que fortaleceu a segurança de seu sistema de emissão de passaportes. Os russos, então, buscaram alternativas na América Latina.

O principal mecanismo adotado por Moscou para infiltrar seus espiões em uma nação estrangeira vinha sendo através da diplomacia. Ken McCallum, diretor do MI5, o serviço de inteligência doméstica britânico, calculou em novembro de 2022, já com a guerra da Ucrânia em curso, que mais de 600 russos haviam sido obrigados a deixar países europeus sob a suspeita de serem espiões disfarçados de diplomatas.

No caso de Brasil e Argentina, a missão é mais simples, já que ambos costumam fazer vista grossa quando desconfiam de espiões transitando por seus territórios. “Por razões práticas e ideológicas, nenhum dos países quer brigar com a Rússia”, disse a The Economist em setembro de 2023, pouco após a prisão de Cherkasov em Guarulhos. “O Brasil recebe cerca de um quinto de seus fertilizantes da Rússia, por exemplo. A Argentina recebe um décimo.”

A publicação faz, por fim, um alerta: muitos dos “diplomatas” forçados a deixar a Europa desde o início do conflito ucraniano encontraram um novo lar em países da América Latina. E sentencia: “O problema pode piorar em breve.”


A Referência



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