Foto: Magnus Nascimento
Felipe Salustino
Repórter
Quando o assunto é descarbonização, o Rio Grande do Norte desponta como uma potência nacional, com protagonismo em áreas como energias renováveis, graças ao potencial local e às pesquisas encabeçadas por diversos atores potiguares. Mas o estado também é pioneiro em soluções sustentáveis para a aviação, um setor crucial na redução dos impactos das mudanças climáticas em todo o mundo. O destaque, nesse caso, é fruto do trabalho de uma equipe do Instituto Senai de Inovação em Energias Renováveis (ISI-ER), em Natal, que desenvolveu um combustível sustentável para aviação (SAF) a partir de glicerina.
Os resultados do projeto — a primeira planta-piloto para produção de SAF no Brasil — foram entregues no ano passado. O trabalho é coordenado pela pesquisadora Fabíola Correia, responsável pelos estudos realizados no Laboratório de Hidrogênio e Combustíveis Avançados (H2CA) do ISI-ER. O H2CA foi inaugurado em setembro de 2023 pelo Instituto Senai e a Cooperação Brasil-Alemanha para o Desenvolvimento Sustentável. Fabíola explica que as pesquisas sobre combustíveis começaram em 2008, numa época em que a urgência climática era pouco discutida, com processos voltados à chamada gasolina e diesel verdes.
Os estudos sobre SAF começaram apenas em 2017, impulsionados pelas demandas de descarbonização, por iniciativa do ISI-ER e da Rede Brasileira de Bioquerosene e Hidrocarbonetos Sustentáveis para Aviação (RBQAV), da qual Fabíola faz parte. SAF é a sigla em inglês para Sustainable Aviation Fuels, um combustível alternativo para aeronaves produzido a partir de fontes que atendem a padrões de sustentabilidade. As opções de matéria-prima são inúmeras, segundo a Agência Nacional de Aviação Civil, a exemplo de resíduos da agricultura, óleo usado de cozinha, gorduras, cana-de-açúcar e milho, entre outras.
No projeto desenvolvido pelo ISI-ER, a matéria-prima utilizada foi a glicerina, fruto de um estudo anterior. “A glicerina é um resíduo da indústria de biodiesel, um subproduto com pouco valor agregado que às vezes se torna até um problema devido à alta produção. Buscamos trabalhar dentro dos conceitos de economia circular, trazendo subprodutos industriais de menor valor para produzir matéria-prima de baixo custo e convertê-la em um produto de alto valor”, afirma Fabíola.
Em 2021, a glicerina começou a ser estudada no ISI-ER em parceria com a GIZ (Deutsche Gesellschaft für Internationale Zusammenarbeit), a Cooperação Técnica Alemã. “O órgão nos identificou justamente por conta do nosso histórico em pesquisas com combustíveis desde 2008”, conta a pesquisadora. Da parceria firmada em 2021 surgiu o H2CA, dois anos depois, o que permitiu elevar o grau de maturidade tecnológica do projeto para um nível mais próximo da indústria, chamado TRL (Technology Readiness Level).
A escala TRL varia de 1 a 9. Quanto maior o número, mais próxima a tecnologia está do nível industrial. “Com a planta-piloto, saímos de um TRL 4 para 6 e 7. Isso é importante porque agora conseguimos validar nossos processos sem a preocupação de fazer mudanças ao apresentar os resultados à indústria, como acontecia em pesquisas com menor TRL”, conta Fabíola Correia.
Produção
A produção de combustíveis avançados, como é o caso do SAF, requer um gás de síntese produzido a partir da junção de uma molécula de hidrogênio (H) e uma molécula de monóxido de carbono (CO). A extração desses dois gases na glicerina se dá por meio de um processo termoquímico. Nele, o foco é o uso adequado da temperatura e de um catalisador para retirar da matéria-prima (a glicerina é formada por carbono, hidrogênio e oxigênio) a molécula de hidrogênio de CO, que passará, a partir daí, para uma nova fase, chamada de síntese de Fischer-Tropsch. Esta é uma tecnologia alemã da década de 1930 utilizada durante a Segunda Guerra Mundial que transformava carvão em diesel. Com a tecnologia, hidrogênio e CO sofrem um rearranjo para formar a cadeia do combustível composta pelos dois gases.

“Esse rearranjo é alcançado com pressão, temperatura e catalisadores adequados para obter a cadeia do querosene de aviação como SAF e também como diesel. No caso do SAF, são necessários ainda dois outros processos, porque a cadeia de hidrogênio e CO possui um pouco de oxigênio, o que não pode acontecer, já que o combustível precisa ser idêntico ao querosene fóssil. Isso é fundamental para que não seja necessário alterar a infraestrutura das aeronaves”, pontua Fabíola Correia.
Os processos seguintes consistem em extrair o oxigênio e, em seguida, realizar a isomerização — etapa em que a molécula de hidrogênio e CO é igualada à molécula do combustível fóssil. O projeto finalizado foi entregue à GIZ, junto com um estudo de viabilidade técnica e econômica e o design de uma unidade industrial. Segundo Fabíola, entretanto, a chegada do produto ao mercado depende de políticas públicas que ainda precisam ser desenvolvidas.
“Nós já temos regulação por parte da ANP [Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis], mas o SAF é algo novo, que requer tempo para produção. Há diversas iniciativas, como a construção de plantas voltadas a esse fim, com o objetivo de atender o País, considerando a Lei do Combustível do Futuro, recém-aprovada e que estabelece a obrigatoriedade do uso de SAF para reduzir a emissão de carbono a partir de 2027. O Brasil terá que correr bastante até lá, então o importante é criar iniciativas para produção, uma vez que regulação nós já temos”, afirma a pesquisadora.
Contudo, ela reconhece: as iniciativas dependem de incentivos ainda inexistentes.
Fabíola lembra que todo novo produto, especialmente se tratando de biocombustíveis, vem acompanhado de altos custos. Por isso, ela destaca a necessidade de benefícios para evitar o encarecimento do setor de aviação. “A depender da rota, o SAF poderá elevar em até cinco vezes os custos. Sem incentivos fiscais, isso será remetido ao consumidor final, o que é inadmissível. Essa é nossa principal barreira no Brasil. É preciso também ampliar as tecnologias para a produção – hoje são 11 certificadas no País e há outras em aprovação”, frisa.
A pesquisadora reforça que é necessário expandir a certificação de tecnologias, considerando a diversidade de matérias-primas disponíveis no País, como as energias renováveis. O próprio ISI-ER atua em novas frentes para o desenvolvimento de SAF a partir de CO² capturado do ar, hidrogênio obtido por eletrólise, bio-óleos e a rota HEFA, que utiliza óleos diversos (de palma, soja, entre outros) para produção de combustível renovável. “Se tivermos uma linha com políticas públicas e pesquisas aplicadas, conseguimos criar uma estrutura para atender tanto o mercado interno quanto externo”, avalia.
“Protagonismo fantástico”
A produção de SAF irá trazer diversos impactos para o Brasil e para o Rio Grande do Norte, de acordo com Fabíola Correia. O desenvolvimento de soluções como a produção de combustível a partir de glicerina, como aconteceu no ISI-ER, deixa para o estado um legado de referência que antes não existia. “Temos aqui no RN um protagonismo fantástico. Além disso, a produção em larga escala no Brasil vai nos tornar essenciais para o mundo”, ressalta.
O pioneirismo, no entanto, não é motivo para acomodação. As enormes potencialidades do estado para produção de SAF têm estimulado Fabíola e equipe a seguirem em busca de novas soluções de querosene sustentável para aviões, com o propósito de chegar cada vez mais perto das necessidades da indústria. “O intuito é chegar ao TRL 9. Nossa atuação não se resume apenas à busca de novas matérias-primas, mas abrange o processo como um todo. Estamos trabalhando em novos catalisadores de baixo custo para criar potencial à produção industrial pensando na relação custo-benefício”, fala.
Com a demanda por descarbonização, a produção de SAF será vantajosa para o País também nos aspectos econômicos, sociais e financeiros, de acordo com ela. “Atender os mercados interno e externo – e eu não tenho dúvida de que isso vai acontecer – será muito lucrativo. Já temos um pioneirismo em relação à indústria de biodiesel com uma produção muito qualificada e agora temos a chance de fazer isso com o SAF”, diz Fabíola.
Trabalho em equipe

As pesquisas em torno de novas soluções seguem no Laboratório de Hidrogênio e Combustíveis Avançados do ISI-ER por meio de uma equipe afiada, que continua a crescer. Atualmente, são 26 pessoas em atuação, entre técnicos, graduados, mestres e doutores. O número será ampliado graças à demanda de produção de SAF via rota HEFA. “Estamos com um processo seletivo que vai trazer mais quatro pessoas para a equipe”, conta a coordenadora do laboratório, Fabíola Correia.
Formada em Química, a chegada dela ao ISI-ER Senai representou uma guinada na carreira, com a troca das pesquisas em combustíveis fósseis para estudos em soluções renováveis. “Quando a transição energética chegou, eu já defendia tudo o que estava surgindo”, confessa.
Ciente da importância de incluir mulheres na área, ela conta que tem como missão o estímulo da participação feminina nas pesquisas que desenvolve. “Busco bastante isso. Já fizemos dois cursos sobre hidrogênio verde trazendo cases de sucesso para incentivar as mulheres a seguirem pelo universo da transição energética”, afirma.
Tribuna do Norte
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