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segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

Crise em Cuba leva a recorde de pedidos de refúgio de cubanos no Brasil


 Foto: YAMIL LAGE/AFP/JC

Para a geração de Lianet Miravet Cabrera, 20, querer deixar Cuba não é propriamente uma novidade. O acesso à internet na ilha, ainda que tardio, acelerou o desejo de mudança. Mas o que era uma vontade tem se transformado na única saída para fugir da crise.

Cabrera viajou para o Brasil com o marido, Nelson García Román, 30, em julho de 2022. O casal vive hoje em Jaraguá do Sul, no interior de Santa Catarina. Ela, estudante de engenharia em Havana, cursa agora administração de empresas e trabalha com contabilidade. Ele, professor de matemática, ensina a matéria em um canal no YouTube.

“A mentalidade que os cubanos tinham antes não é a mesma de agora”, diz Cabrera. “A internet começou há pouco tempo no país, mas as pessoas já se dão conta de que não têm ferramentas para se defender.”

Cabrera e Román engrossam a lista de cubanos que pediram refúgio no Brasil em 2022, ano que registrou cifra recorde. De janeiro a novembro, foram 4.241 solicitações de cubanos, número que supera inclusive os registros anteriores à pandemia de coronavírus. Cidadãos da ilha foram a segunda principal nacionalidade a solicitar refúgio, atrás apenas dos venezuelanos, principal fluxo migratório para o Brasil.

Cuba vive uma das piores etapas da crise econômica

Cuba vive uma das piores etapas da crise econômica crônica, agravada pela queda da receita do turismo na pandemia e pela reforma cambial conduzida pelo regime. Mesmo os cubanos com ensino superior e bons empregos relatam perda drástica no poder de consumo.

O Brasil tem se firmado como alternativa para emigrar. Primeiro por ser um destino mais barato que os EUA, onde restrições na fronteira dificultam o ingresso de cubanos. Segundo porque é comum que cubanos tenham familiares ou amigos que ficaram no Brasil após desertarem do programa Mais Médicos.

A lei migratória brasileira, ainda que com seus desafios, também é favorável. Ao solicitarem o refúgio, imigrantes recebem um protocolo que lhes permite acessar trabalho, saúde e outros direitos enquanto o pedido é avaliado pelos órgãos responsáveis —o que pode levar anos.

Mercedes (nome fictício), 31, deixou Cuba com o marido e o filho, então com 1 ano e meio, em abril de 2022. Graduada em economia, era professora universitária em seu país, mas diz que a situação financeira ficou insustentável. “É uma situação que te asfixia. O governo implementou medidas que colocam o povo na miséria. Com um bebê pequeno, tudo estava cada vez mais difícil.”

O Brasil foi o destino escolhido, entre outros fatores, porque a irmã de Mercedes é ex-integrante do Mais Médicos e pediu refúgio no país. A família agora vive em Sorocaba, no interior de São Paulo. Mercedes fica com o filho, enquanto o marido, também economista, trabalha como ajudante de serralheiro enquanto tenta revalidar seu diploma cubano.

Mercedes critica a maneira com que foi conduzida a chamada “tarea ordenamiento”, o plano de Cuba para unificar suas moedas. A medida virou um gatilho inflacionário, e há muitos produtos que hoje só são vendidos em dólares. Comprá-los, no entanto, está cada vez mais difícil: a ideia inicial era que a moeda americana fosse comprada por 24 pesos cubanos, mas a inflação faz com que o preço supere cem pesos.

O cenário desfavorável foi uma das pautas dos protestos de 11 de julho de 2021 na ilha, atos de volume incomum que geraram ampla repressão. Cabrera e Mercedes contam que participaram da mobilização em seus bairros.

Aline Miglioli, doutora em desenvolvimento econômico pela Unicamp com pesquisas sobre Cuba, diz que a pandemia prejudicou não apenas o turismo, mas também a renda de cidadãos que orbitam o setor, como aqueles que alugam quartos em suas casas para turistas —as chamadas “rentas”— e os taxistas.

“Muitas pessoas estão vendendo suas moradias”, relata a pesquisadora. “Os anúncios quase sempre dizem: vendo com tudo dentro. Com esse dinheiro, eles custeiam a viagem para países como o Brasil.”

O trajeto pode levar até uma semana. Orlando (nome fictício), 27, viajou por seis dias. Em um esquema irregular, após pagar para um coiote da Guiana que conheceu em um grupo no Facebook, chegou em outubro em Boa Vista, em Roraima.

Primeiro, foi em um voo direto de Havana para o Suriname, país que não pede vistos para cubanos. Ali encontrou o coiote e um grupo de pessoas de países como Nepal, Índia e Paquistão que pretendiam ir para os EUA. Em um trajeto de 9 horas em uma van apertada, foi levado até a vizinha Guiana e, depois de mais 20 horas de viagem, foi deixado em Boa Vista, onde solicitou refúgio à Polícia Federal.

Essa rota é uma das mais comuns para cubanos que emigram para o Brasil. Em relatório recente, o Acnur, agência para refugiados da ONU, diz ter observado uma mudança na dinâmica de entrada por Pacaraima, principal porta para venezuelanos: agora, há mais cidadãos de outras nacionalidades —cubanos no topo. Foram ao menos 97 cidadãos da ilha de junho de 2021 a setembro de 2022, diz o órgão.

Abin monitora 

À Folha a Abin (Agência Brasileira de Inteligência), que monitora o tema, diz que a rota de ingresso pelo Oiapoque, no Amapá, por via marítima, tem ganhado relevância. Até aqui, era comum que cubanos partissem para Porto Alegre e, dali, para o Uruguai. Ou, então, que ficassem no Brasil de maneira temporária, para angariar recursos e, depois, emigrar para os EUA. Em muitos casos, quando o refúgio não é solicitado, nem sequer há registro oficial da passagem pelo Brasil.

Mas isso tem mudado, e cada vez mais cubanos optam por permanecer no Brasil. Orlando é um deles. Ele trabalhava no setor de importação e distribuição de alimentos em Cuba recebendo 2.500 pesos por mês, mas relata que já não conseguia pagar as contas e ajudar a mãe. “Um saco com 2,5 kg de frango custava 1.700 pesos [cerca de R$ 360].” No Brasil, trabalha como garçom em um restaurante em São Paulo.

A intensificação do fluxo de cubanos para o país também desafia o Conare (Comitê Nacional para os Refugiados), ligado ao Ministério da Justiça. Com um perfil de migração muitas vezes atrelado a questões econômicas, migrantes de Cuba por vezes não se enquadram nos critérios para refúgio, concedido para cidadãos que estejam sofrendo perseguição em seu país ou sujeitos a violações de direitos humanos.

Até aqui, o Brasil reconheceu 1.043 cubanos como refugiados. A maioria —843— devido ao temor de expressar suas opiniões políticas em Cuba. Especialistas que acompanham o tema demandam que o órgão elabore alguma forma de proteção complementar para cidadãos de países como Cuba, de modo que imigrantes não fiquem por anos esperando respostas sobre suas demandas.

E o cenário, claro, virou uma bomba-relógio para o regime cubano. O êxodo histórico observado na ilha poderia acelerar o encolhimento da população, além de afastar a mão de obra. Projeções da ONU mostram que a população cubana, hoje em torno de 11,2 milhões de pessoas, cairá para 10 milhões em 2050. No final do século, estará em torno de 6,5 milhões —número semelhante ao da década de 1950.

Folhapress

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