Fonte: BBC
O governo brasileiro caminha oficialmente para fechar 2016 com o terceiro rombo anual seguido em suas contas. Isso porque o Congresso Nacional aprovou nesta quarta-feira a nova meta fiscal: um deficit primário recorde de R$ 170,5 bilhões.
Na tentativa de reverter esse quadro, o presidente interino Michel Temer anunciou que proporá ao Legislativo uma alteração na Constituição para criar um teto para o crescimento dos gastos.
A ideia é que o aumento fique limitado à inflação do ano anterior, restringindo inclusive a expansão dos gastos com saúde e educação.
Outras medidas impopulares também estão em discussão, como aumento de impostos e reforma da previdência.
"As despesas do setor público estão em trajetória insustentável. Lá na frente, vamos condenar o povo à dificuldade extraordinária", argumentou Temer.
Os resultados negativos que começaram a ser registrados a partir de 2014 interromperam 16 anos de saldos positivos nas contas federais. Mas, afinal, como chegamos a esse rombo recorde? E qual o problema dessa resultado?
A BBC Brasil conversou com três especialistas em contas públicas para responder essas perguntas:
Primeiro, o que é o resultado primário?
O resultado primário é a diferença entre receitas e despesas do governo, excluindo do cálculo os ganhos e gastos com juros - ou seja, sem contar o que a União paga por empréstimos que contraiu no mercado e o que recebe pelo dinheiro que emprestou (financiamentos à agricultura, a estudantes, a microempresas, etc.).
A maior parte da receita primária é arrecadada com impostos. Já as despesas incluem gastos com aposentadorias, benefícios sociais, salários dos servidores, obras de infraestrutura e funcionamento dos serviços públicos em geral (hospitais, universidades, embaixadas, etc.).
O principal objetivo de ter saldo positivo (superavit primário) é pagar juros da dívida pública, evitando seu crescimento descontrolado. Quando isso acontece, aumenta a desconfiança dos credores quanto ao pagamento futuro da dívida, levando a uma alta dos juros cobrados para financiar o Estado e criando um ciclo insustentável no longo prazo.
Além disso, a busca do superavit contribui para manter a inflação baixa, ao limitar os gastos públicos. Quanto mais o governo consome bens e serviços, mais pressiona os preços para cima.
Como chegamos ao rombo recorde?
Objetivamente, a expectativa de deficit de R$ 170,5 bilhões é resultado da queda das receitas e do aumento contínuo das despesas (entenda abaixo porque isso está acontecendo).
Além disso, alguns economistas também consideram que a falta de transparência na gestão das contas públicas contribuiu para armar uma série de "bombas fiscais" que estão explodindo agora.
Receitas em queda
Após anos seguidos de elevação expressiva, desde 2011 as receitas primárias do governo federal apresentam baixo crescimento ou queda real.
Isso é consequência de dois fatores. De um lado, o desempenho ruim da economia nos últimos anos teve impacto direto na arrecadação, já que boa parte dos impostos brasileiros são cobrados sobre a produção industrial e o comércio.
Com menos produção e menos vendas, consequentemente se arrecada menos.
"Essa tendência de queda (do PIB) tem impacto muito grande nas receitas. E a expectativa é de nova retração da economia em 2016", resume o professor de economia da UnB Jorge Arbache.
Diante desse cenário, o ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, anunciou na última sexta que o governo estava reduzindo sua previsão de receita líquida (descontada as transferências obrigatórias para Estados e municípios) em 2016 para R$ 1,078 trilhão, uma queda de R$ 108 bilhões ante a última previsão do governo Dilma - "superestimada", segundo ele.
De outro lado, o segundo fator que explica as perdas de arrecadação foi o volume elevado de desonerações adotado nos últimos anos, observa Maria Liz Roarelli, consultora legislativa na área de Orçamento do Senado.
Desde a crise financeira mundial de 2008/2009, o governo petista concedeu uma série de cortes de impostos, principalmente ao setor industrial, na expectativa de que esses recursos que não estariam sendo pagos ao governo fossem usados para investir no aumento da produção.
A lógica era simples: em um primeiro momento, o governo arrecadaria menos. No entanto, com o aumento da produção e das vendas, em um segundo momento a arrecadação cresceria.
Os investimentos, porém, acabaram não acontecendo, e o governo ficou só com as perdas. Roarelli calcula que a soma das desonerações concedidas entre 2010 e 2014 significou menos R$ 101 bilhões nos cofres em 2015.
"Essas desonerações não surtiram qualquer efeito. Foi um gasto sem retorno. Um modelo ingênuo de recuperar a economia", nota ela.
Nesse contexto, alguns economistas, como o diretor executivo para o Brasil do FMI (Fundo Monetário Internacional), Otaviano Canuto, consideram que a criação de novos impostos não representaria um aumento de carga tributária, mas sua "recomposição".
No momento, o governo estuda recriar a CPMF (imposto sobre transações financeiras) ou elevar a Cide (contribuição sobre combustíveis). Há também quem defenda taxar lucros e dividendos de acionistas de empresas, mas o governo não sinalizou apoio a essa proposta.
Despesas em alta
Nos últimos anos, o governo vem anunciando sucessivos cortes de gastos.
Na prática, porém, a despesa total segue crescendo. Isso acontece porque, embora a gestão tenha reduzido algumas rubricas - como investimentos em infraestrutura -, despesas obrigatórias, que só podem ser cortadas com autorização do Congresso, continuam aumentando automaticamente.
Dentro desse grupo de gastos que não podem ser cortados livremente pelo governo, a maior parte da despesa vem da Previdência Social. Aposentadorias e pensões consumiram no ano passado R$ 436,1 bilhões, representando quase a metade do total de despesas obrigatórias (R$ 905 bilhões).
Esses gastos vêm crescendo continuamente, refletindo o envelhecimento da população e também a decisão dos governos Lula e Dilma de atrelar o piso da previdência ao salário mínimo (que tem sido reajustado acima da inflação).
Em dez anos, o crescimento acumulado do gasto com aposentadorias e pensões chega a 199% (cerca de 70% se descontada a inflação do período).
"A despesa com previdência e outros benefícios sociais só faz crescer e muito rapidamente", nota Arbache, em referência também à garantia de um salário mínimo por mês para pessoas sem condições de trabalhar, seja por deficiência ou idade avançada (BPC/LOAS).
A segunda categoria de gasto com maior peso entre as despesas obrigatórias são os salários dos servidores que, na avaliação do professor da UnB, tiveram aumentos "substanciais" nos últimos anos. Na última década, a alta acumulada dos gastos da União com pessoal é de 157% (aumento real de quase 50%).
Além disso, na sua avaliação, o governo também criou muitos programas nos últimos anos, sem avaliar adequadamente a sua eficiência.
Os gastos com saúde e educação, por sua vez, crescem todo ano automaticamente, seguindo parâmetros previstos na Constituição.
Falta de transparência
Para o pesquisador do IBRE/FGV José Roberto Afonso, um terceiro fator contribui para a o rombo recorde previsto para 2016: a falta de transparência fiscal do governo.
"Anos e anos de descumprimento das regras fiscais e desprezo pela transparência, inclusive para debater os problemas, explicam o rombo. Muito desse deficit não será deste ano, mas sim resultado de compromissos assumidos no passado e que, de alguma forma, foram escondidos ou postergados. Os economistas chamam de riscos fiscais", explica.
Um desses riscos, exemplifica Afonso, é a provável necessidade de a União injetar recursos em estatais que enfrentam dificuldade financeira, como Eletrobras e Petrobras.
O pesquisador defende a formação de uma "comissão da verdade fiscal" com especialistas da academia, que trabalhariam junto a órgãos de controle (CGU e TCU). O objetivo seria fazer um diagnóstico dos problemas e apresentar soluções.
"Não basta punir quem errou, é urgente mudar as regras que permitiram tais erros. É preciso refundar a LRF (Lei de Responsabilidade Fiscal), ou seja, mudar dezenas de seus dispositivos, para aperfeiçoá-la e endurecê-la", defende.
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