fonte: Estadão Conteúdo
Em julho de 2009, a seleção do Zimbábue viajou até a Malásia para realizar dois amistosos. Em ambos, os resultados já estavam acertados para garantir que apostadores lucrassem milhões de dólares. No primeiro jogo, os africanos cumpriram o acordo e perderam por 4 a 0. Mas os jogadores ficaram insatisfeitos, pois não haviam recebido o dinheiro prometido.
Na segunda partida também contra a Malásia, os africanos convocaram a pessoa responsável por organizar o resultado e, no intervalo dentro do vestiário, avisaram: “Não voltaremos para o segundo tempo”. O criminoso que havia planejado tudo apenas abriu seu casaco. Ele tinha um revólver preso à cintura. “Você talvez não volte pra casa”, respondeu. Os jogadores voltaram a campo e perderam o jogo por 1 a 0.
Mais tarde, se descobriu que aquela nem sequer era a seleção do Zimbábue, mas apenas jogadores do país que se disfarçaram com o uniforme oficial da seleção contratados pelos apostadores. E isso tudo em uma partida disputada em uma data oficial da Fifa.
O incidente faz parte do livro que será lançado no Brasil na próxima semana e que revela como amistosos, jogos de divisões inferiores, partidas de campeonatos nacionais, torneio olímpico e até jogos de Eliminatórias para a Copa do Mundo passaram as ser manipulados. Em “Jogo Roubado” (Editora Paralela), o escritor Brett Forrest revela como o crime organizado internacional colocou definitivamente o futebol como um de seus alvos.
O autor detalha de forma inédita como uma máfia internacional aliada a cartolas sem escrúpulos compram resultados, jogadores e ligas inteiras. Sua conclusão: o esporte mais popular do planeta está seriamente ameaçado pelo crime.
Um crime que, segundo as investigações, não hesita em matar quando os lucros são afetados. Em 2012, depois de revelar como operavam os clubes da primeira divisão do campeonato búlgaro, Yordan Dinov, gerente da empresa Planetwin365 para a Bulgária, foi assassinado em plena rua da cidade de Blagoevgrad. Sua empresa havia revelado a manipulação de resultados no futebol.
A dimensão revelada indica que, até pouco tempo, nem a Fifa entendia o risco que o esporte atravessa, com a facilidade de comunicações, transferência de dinheiro e principalmente com a popularidade global do futebol. Hoje, segundo o livro, “há em curso investigações policiais sobre corrupção de resultados de jogos de futebol em mais de sessenta países, o que significa um terço do mundo”.
A lista não deixa de fora nenhuma região. Na Turquia, a polícia chegou a prender cem jogadores, a associação de Futebol do Zimbábue baniu oitenta jogadores da seleção nacional. Lu Jun, o primeiro árbitro chinês a apitar uma Copa, foi preso por cinco anos por aceitar subornos de US$ 128 mil, enquanto o presidente da Associação de Futebol da China atualmente está em uma colônia penal condenado por corrupção nos resultados de jogos de futebol.
Na Coreia do Sul, 57 pessoas foram detidas por fraude de resultados. Dias depois, dois jogadores cometeram suicídio. A polícia alemã gravou criminosos croatas
discutindo por telefone seus planos para corromper jogos no Canadá.
COPA DO MUNDO – Mas é a ousadia dos criminosos em agir nos maiores torneios do mundo que mais chama a atenção dos especialistas. A investigação aponta como o Camboja manipulou sua própria derrota numa série de dois jogos com o Laos, em uma disputa qualificatória para a Copa de 2014.
O esquema mostra ainda como grupos fecharam acordos com a federação sul-africana para “fornecer” árbitros para partidas amistosas antes do Mundial de 2010. Na própria Copa, tanto a Fifa como a Uefa acreditaram que um homem que se passava por um agente do serviço secreto alemão nos vestiários dos jogos era, na realidade, um representante da máfia do Leste Europeu em busca de comprar jogadores.
Durante os Jogos Olímpicos de Atlanta, em 1996, dois criminosos foram até Birmingham, no Alabama, e ofereceram dinheiro ao goleiro do México, Jorge Campos. Mas ele recusou a proposta. A zaga da seleção da Tunísia havia sido comprada para o mesmo torneio. Em três jogos, eles sofreram cinco gols e não venceram nenhuma partida. Tudo como combinado.
PLANEJAMENTO – Para demonstrar que os criminosos não são nem amadores nem principiantes, o livro concentra parte de seu roteiro em Wilson Perumal, chefe de um grupo criminoso de Cingapura e teria se tornado, em 2010, no “maior corruptor de jogos do mundo”.
Se inicialmente ele contratava juízes impostores para as partidas que queria manipular resultados, logo mudou de estratégia e comprou mais de dez árbitros oficiais da Fifa. “Na Copa Africana de Nações, um de seus associados afirma que ele corrompeu o torneio inteiro”, revelou o livro.
Perumal “possuía jogadores, técnicos, oficiais de federações nacionais e líderes políticos em sua carteira de clientes”. “Manipulou resultados em jogos de campeonato, grandes amistosos, jogos entre equipes de base, jogos não televisionados disputados em péssimos gramados mediante uma dúzia de espectadores – qualquer coisa que os agentes asiáticos oferecessem, qualquer coisa que pudesse gerar apostas”, revela o livro. “Certa vez, ele (Perumal) alegou ter maior “controle sobre a liga de Futebol da Síria do que Assad sobre seu povo”.
Nas Américas, Perumal estava envolvido em partidas suspeitas na Argentina, Bolívia e Panamá e ainda tinha se infiltrado na Federação Salvadorenha de Futebol. Em 2010, antes da Copa do Mundo, um amistoso entre El Salvador e EUA, em Tampa na Flórida, teria sido alvo de suas manipulações.
Se os criminosos estavam preparados para lucrar, de outro lado o que se vê é uma polícia internacional e dirigentes totalmente despreparados para lidar com os casos de manipulação. O livro traz detalhes da incapacidade de agentes de entender a dimensão do crime e conta exemplos como um oficial de imigração no aeroporto internacional Toncontim, em Tegucigalpa, Honduras, chegou a parar um assistente do goleiro da seleção da Guatemala e descobriu US$ 85 mil em sua mala. Mas acreditaram na versão do criminoso e não suspeitara que aquilo era dinheiro que o atleta havia recebido para entregar um jogo.
Para o autor do livro, o futebol se transformou em um caminho para o crime mais seguro que o tráfico de drogas e prostituição. “Era dinheiro digital e não deixava rastros e este seria o fluxo de renda mais perigoso para o crime organizado na história moderna”, completou.
‘A VERDADE MÁFIA É A PRÓPRIA FIFA’ – Para os criminosos citados no livro, a “verdadeira máfia” é a Fifa. O autor cita um e-mail entre o mafioso Wilson Perumal e o ex-chefe de segurança da Fifa e ex-funcionário da Interpol, Chris Eaton, em que o asiático condenado por manipular resultados ataca a entidade com sede em Zurique.
Em junho de 2012, um tribunal suíço tinha envolvido João Havelange, ex-presidente da Fifa, em um escândalo de corrupção. A corte alegava que o brasileiro havia embolsado US$ 1,53 milhão por meio de uma empresa de marketing falida (ISL). “Seu suposto parceiro no esquema, Ricardo Teixeira, ex-genro de Havelange, era o chefe do comitê brasileiro organizador da Copa do Mundo de 2014”, lembra o livro.
Diante da condenação, Perumal escreveu um e-mail a Eaton. “A Fifa parece mais um empreendimento criminoso do que uma organização oficial”, disse. “O sujo falando do mal lavado. Esses caras são criminosos que merecem ser condenados à prisão em vez de serem julgados por um comitê de ética, uma maneira muito conveniente de escapar da justiça”, insistiu o criminoso. “Um grupo de bandidos tentando dar a volta ao mundo pregando contra a corrupção. A Fifa é uma piada”, completou o e-mail.
Para o autor do livro, o comportamento da Fifa “era tão questionável que permitia que um arranjador condenado parecesse digno de confiança para criticá-la”. Mais tarde, Perumal afirmaria: “A Fifa é como uma organização mafiosa. Eles não respondem a ninguém”.
O livro ainda revela que, em 2012, um dia depois de apresentar aos jornalistas em Zurique seu projeto sobre como controlar a manipulação de resultados, Eaton receberia uma ligação da direção da entidade para avisá-lo: as medidas não seriam implementadas por Joseph Blatter. Eaton pediu demissão na mesma semana.
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