fonte:época
Em outubro de 2011, todos assistiram com espanto à cena do ditador Muammar Khadafi desacordado, sendo arrastado por rebeldes de uma trincheira para depois ser espancado até a morte. Mundo afora, muitos espectadores tiveram ressalvas diante da cena de brutal violência. Mas diante das atrocidades cometidas pelo regime de Khadafi, cultivava-se ao menos uma certeza: a Líbia poderia se tornar um lugar melhor dali em diante e virar um Estado de direito.
Os bombardeios da OTAN, que auxiliaram os rebeldes líbios a depor e matar Khadafi, completaram três anos em 2014. A essa altura, os Estados Unidos e seus aliados europeus – principais protagonistas dos ataques – calculavam que a capital Tripoli teria um governo com mínimo de solidez e representatividade, legitimado pelo voto do povo líbio.
Em 2012 , foi realizada a primeira eleição parlamentar desde 1965, quando o país ainda era governado pela monarquia do rei Idris. Seu propósito original era formar um Congresso Geral Nacional, capaz de eleger os membros de uma assembleia constituinte. Seus efeitos não poderiam ser mais controversos. Nada menos que 22 partidos disputaram as 200 cadeiras do Parlamento. E a pluralidade de forças em disputa pelo poder deu início a uma onda incontrolável de violência. Nesses três anos, a Líbia já passou pelo comando de cinco primeiros-ministros.
Em abril do ano passado, o Congresso concordou em se dissolver e convocar eleições diretas para a Assembleia Constituinte. A nova eleição ocorreu em junho deste ano, em meio a cenas de caos e violência. Quando os resultados foram divulgados e a maioria dos assentos no parlamento acabou nas mãos de nacionalistas laicos, mais uma vez o conflito irrompeu no país. Para agravar, na semana passada,a Suprema Corte do país declarou ilegal a votação. Um novo pleito deverá ser organizado.
Quando fez um discurso vitorioso após a derrubada de Khadafi, Obama não poderia imaginar que, três anos mais tarde, a Guerra Civil Líbia ressuscitaria. Naquela época, tão logo vieram à tona as imagens do corpo ensanguentado de Khadafi, o presidente americano fez um pronunciamento entusiasmado nos jardins da Casa Branca. Ele disse que os líbios haviam vencido “sua revolução” e que havia sido deposta “a negra penumbra da tirania”. Tanto Obama quanto os líderes europeus acreditavam haver ali o primeiro indício de um novo país, fundado na liberdade.
Os primeiros indicativos de que a situação não se desenharia da forma imaginada pelo Ocidente surgiram quase um ano depois, em setembro de 2012. Radicais islâmicos atacaram o consulado dos Estados Unidos em Benghazi e mataram o embaixador americano John Christopher Stevens. Obama pediu reforços à segurança de diplomatas americanos trabalhando na Líbia e condenou o gesto de “violência insensata”.
Benghazi foi o primeiro grande ponto de inflexão das intervenções da OTAN. Não foi motivo de frustração apenas para Obama. A segunda maior cidade do país, situada às margens do Mediterrâneo, acabou também com o discurso do primeiro-ministro britânico David Cameron. Tão logo Khadafi foi deposto, Cameron viajou para Benghazi ao lado do então presidente francês Nicolas Sarkozy. O primeiro-ministro discursou em praça pública, ainda mais entusiasmado que Obama, e disse para uma multidão em polvorosa que Benghazi era “um exemplo”, pois havia “derrotado um ditador” e “escolhido a liberdade”.
Só neste ano, 250 pessoas morreram por razões políticas em Benghazi e Derna, as duas principais cidades da região Leste da Líbia. Em todo o país, nas últimas três semanas, o número de assassinatos chegou a 400. Em setembro, uma série de ataques culminou numa “sexta-feira negra”. Neste dia, 19 de setembro, foram encontrados os corpos de dois jovens ativistas (um com 18 e outro com 19 anos), um clérigo popular na região e outros cinco civis. Essa não é a liberdade que esperavam Obama, Cameron e Sarkozy.
A onda de violência em Benghazi é produto do conflito entre duas grandes facções. De um lado há milicianos organizados pelo ex-general Khalifa Haftar, um antigo desafeto de Khadafi recrutado pela CIA no final da década de 1980 para liderar cerca de 600 rebeldes contra o regime. De outro, há os radicais islâmicos do Conselho Shura dos Revolucionários de Benghazi, uma coalizão de extremistas criada em junho deste ano, como resposta ao grupo secularista do general Haftar. Qualquer semelhança com o grupo Estado Islâmico não é mera coincidência. Assim como seus colegas iraquianos e sírios, eles também avançaram com força nos últimos dias contra importantes cidades líbias, subjugando seus moradores e assumindo o controle de entrepostos militares. Além disso, ambos nasceram em países onde truculentas ditaduras foram depostas por meio de intervenções internacionais.
Um relatório publicado no final de outubro pela Anistia Internacional descreve o caos humanitário gerado pelo conflito. A organização afirma que a Líbia vive hoje sob o “regime da bala”, tornando casos de sequestro, tortura e assassinato algo comum e rotineiro. Um homem de 31 anos, sequestrado em agosto deste ano por um grupo armado das redondezas de Tripoli, prestou depoimento aos analistas da Anistia. Ao descrever seus momentos de tortura, disse: “Só depois de ser liberado percebi que todo o meu corpo estava roxo e inchado. Enquanto estive preso, eu só levava socos e chorava. Não houve uma parte de meu corpo onde não bateram”.
Como ocorre na Síria e no Iraque, o novo capítulo da Guerra Civil Líbia mostra também a pior faceta das crises humanitárias. Há um enorme fluxo de refugiados deixando o país todos os dias. Os números mais recentes divulgados pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) indicaram a existência de cerca de 287 mil pessoas acampadas ao redor de Tripoli e Benghazi. Essas pessoas esperam apenas a primeira oportunidade para partir.
Nas viagens mais perigosas, os refugiados tentam atravessar o Mediterrâneo rumo à antiga metrópole, a Itália. Relatos obtidos pelo jornal britânico The Guardian mencionam pequenos barcos lotados com mais de 500 pessoas. Chegar com segurança à terra firme é um milagre. Muitos naufragam pouco antes de avistar o continente.
Outros, contudo, preferem se aventurar por terra. Deixam a Líbia e partem para países vizinhos como Argélia e Egito, atravessando perigosas regiões desérticas, controladas quase sempre por grupos terroristas como a Al Qaeda no Magreb Islâmico. Segundo a ACNUR, quase 100 mil pessoas deixaram a Líbia nestas condições.
Sem Constituição e sem constituinte, a Líbia vive o desgoverno. Como no Iraque e na Síria, as intervenções militartes do Ocidente deixaram uma herança caótica no norte da África.
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