fonte: bbc
Milhares de sírios desapareceram forçadamente e sem deixar vestígios desde março de 2011, quando começaram os levantes no país. Mantidos incomunicados pelo regime sírio ou por grupos militantes em locais secretos, esses detentos muitas vezes vivem em condições subhumanas.
Alguns são torturados; outros acabam mortos. Para seus parentes, a dor de não saber o destino de seus entes queridos é intolerável.
As recentes decapitações de reféns ocidentais pelo grupo autodenominado "Estado Islâmico" despertaram comoção e ira ao redor do mundo. No entanto, um número superior de sírios têm sofrido nas mãos de sequestradores de grupos rebeldes ou de forças de segurança - e sua existência é negada por seus captores.
Segundo entidades de direitos humanos, milhares de homens e mulheres - e também algumas crianças - foram capturadas nas ruas, em suas casas ou locais de trabalho e levadas a prisões oficiais ou secretas. Muitos têm passado anos sem direito à defesa ou contato com suas famílias.
Essas desaparições forçadas e arbitrárias têm sido uma das marcas do conflito sírio, diz Lama Fakih, pesquisadora da ONG Human Rights Watch.
Mas enquanto a princípio o alvo foram manifestantes, explica Fakih, com o passar do tempo ativistas de direitos humanos, jornalistas e advogados - os monitores legítimos das atividades governamentais - também se tornaram vítimas.
"Essas pessoas simplesmente desapareceram."
'Inimigos de Deus'
É o que aconteceu com a escritora e ativista de direitos humanos Samira al-Khalil, 53.
Seu marido, Yassin al-Hajj Saleh, relata que ela foi abduzida com três colegas - a advogada Razan Zeitouneh, o marido dela, Wa'el Hamadeh, e o advogado Nathim Hamadi - em 9 de dezembro de 2013 por um grupo mascarado armado em seu escritório.
Uma das pessoas sequestradas conversava com o irmão pelo Skype no momento do sequestro. O irmão ouviu os captores gritarem às vítimas que elas eram "infiéis" e "inimigas de Deus".
"Não fiz nada, não pude fazer nada", lamenta-se Yassin. Ele acha que os sequestradores são membros do grupo militante islâmico Jaysh al-Islam, que controlava partes de Damasco à época e haviam feito oposição ao plano de Razan de criar uma organização judicial no leste da capital.
Mas Yassin diz que detenções abritrárias sem julgamento "não são uma novidade" em seu país.
Ele próprio foi detido pelo regime quando tinha 19 anos (hoje tem 53), por ter sido membro de uma organização comunista de oposição. Ficou preso por 16 anos. Por isso, teme pela segurança e saúde de sua mulher e os colegas dela.
No último ano de detenção, diz, "fui constantemente torturado e chicoteado. Em alguns casos, eles usavam a fome como forma de tortura. Imagine comer quatro azeitonas de café da manhã durante meses."
Dimensão
Detenções em massa pelas tropas do regime sírio e desaparecimentos subsequentes foram documentados pela Comissão de Investigação da ONU para a Síria, criada em 2011 para apurar crimes de guerra.
O governo tem usado essas detenções para "silenciar a oposição e espalhar medo entre os parentes e amigos dos manifestantes, ativistas e bloggers", diz a comissão.
A Rede Síria de Direitos Humanos estima que até 85 mil pessoas estejam detidas de forma arbitrária pelo regime atualmente.
O Centro de Documentação de Violações na Síria (VDC na sigla em inglês) também calcula que esse número esteja na casa das "dezenas de milhares".
O VDC também tem registros de mais de 1,2 mil pessoas sequestradas por grupos armados - sobretudo o jihadista "Estado Islâmico". Outras 2,6 mil desapareceram sem deixar vestígio.
A ONU acredita que a real dimensão das desaparições forçadas só será sabida com precisão quando o conflito terminar.
Depoimentos de quem sobreviveu indicam que as vítimas suportaram condições desesperadoras, com quase ou nenhum amparo jurídico. A Human Rights Watch documentou tortura sistemática em 27 presídios estatais nas regiões sírias de Aleppo, Damasco, Daraa, Homs, Idlib e Latakia.
Detentos relataram à ONG que viveram em celas superlotadas em que tinham de revezar as horas de sono, eram privados de comida e, em alguns casos, eram forçados a ficar nus. Também passaram por prolongadas sessões de castigos físicos, estupros, choques, simulações de execução, queimaduras e a extração de unhas.
Três especialistas que examinaram 55 mil fotos de prisioneiros mortos, feitas entre 2011 e 2013, acreditam que ao menos 11 mil presos tenham sido torturados sistematicamente e executados desde o início do conflito. As autoridades sírias negam as acusações.
Ainda que a maioria dos casos documentados recaia sobre o regime, o número de desaparições forçadas promovidas por grupos de oposição - em especial o "Estado Islâmico" - está crescendo, diz a ONU.
A Anistia Internacional registrou casos de tortura e execuções sumárias em prisões secretas do "Estado Islâmico".
Agonia
E para famílias tentando encontrar entes queridos detidos por grupos de oposição a busca é excepcionalmente difícil.
Os parentes do fotógrafo Mohammed Nour, 22, que desapareceu após um bombardeio em Raqqa (norte), em agosto de 2013, viveu momentos agonizantes para descobrir se ele estava vivo ou morto.
Quando a câmera dele foi encontrada, derretida, perto dos destroços, os familiares deduziram que o pior havia acontecido. Mas, ao chegar ao local, "procuramos e não encontramos seu corpo", diz o irmão de Mohammed, Amer Matar. "Fomos aos hospitais, perguntamos até mesmo aos combatentes islâmicos, mas não descobrimos nada."
A família começou a ouvir relatos de que Mohammed estaria, na verdade, preso em uma detenção do "Estado Islâmico" em Raqqa.
Mas os combatentes "sequer admitem que têm pessoas em seus presídios", diz Amer. Ele acabou descobrindo que o irmão fora sequestrado enquanto registrava uma operação do "Estado Islâmico" para plantar uma bomba em um carro. E Mohammed não foi visto desde então.
Sem qualquer canal oficial por onde buscar informação, a família dele se sente impotente.
"Nossas mãos estão atadas", diz Amer. "Sequer sabemos onde eles estão mantendo as pessoas presas."
Irmãs
Maisa Saleh enfrenta dor semelhante: busca desesperadamente por notícias de sua irmã mais nova, Samar, 25, sequestrada em Aleppo.
Por uma coincidência bizarra, Maisa soube da abdução da irmã por jihadistas meia hora depois de ela própria ter sido libertada de um presídio estatal: ao entrar na internet para avisar a família que estava solta, Maisa descobriu pelas redes sociais que Samar desaparecera.
"Estava tão feliz de ter saído da prisão", diz. "Tudo mudou quando soube de Samar."
Samar e o noivo, o jornalista Mohammed al-Umor, foram sequestrados enquanto faziam filmagens em Aleppo.
"Dois carros chegaram com homens mascarados e, falando um árabe com sotaque clássico, levaram Mohammed", relata Maisa. "Samar protestou e questionou por que ele estava sendo levado. Então eles também a levaram. Puxaram-na pelo cabelo até o carro e foram embora."
Maisa hoje mora na Turquia e trabalha como jornalista. Tenta lidar com a desaparição da irmã, mas sofre momentos de depressão.
"Sempre que falo dela ou vejo fotos começo a chorar. A dor e a perda são enormes."
Ela tentou, sem sucesso, descobrir para onde Samar e Mohammed foram levados. "Até agora, não temos notícia nenhuma deles. Queríamos que alguém nos dissesse algo, se eles estão vivos ou mortos. Mesmo que Samar esteja morta, pelo menos nos deem o corpo. Digam para nós para que possamos descansar."
'Não desistir'
A resolução 2139 do Conselho de Segurança da ONU, de fevereiro deste ano, condena a "detenção arbitrária e tortura de civis na Síria (...) bem como os sequestros e desaparecimentos forçados", pedindo "o fim imediato de tais práticas e a libertação de todos os detidos arbitrariamente".
A Human Rights Watch também pediu que a ONU exija o acesso de monitores independentes a todos os presídios e que a situação na Síria seja remetida à Corte Penal Internacional.
Desde a captura de sua mulher, Yassin al-Hajj Saleh tem feito campanhas pela libertação de pessoas erroneamente detidas.
Ele diz que está em contato com "mães, pais, esposas, maridos e irmãos" que lutam para descobrir o paradeiro de seus entes queridos.
"As mães dizem que sentem dor cada vez que falam de seus filhos detidos ou sequestrados - sempre que comem, saem para caminhar ou seguem com sua rotina", diz ele. "Sinto exatamente o mesmo. Penso em Samira todos os segundos de todos os dias."
Ele diz que ele e seus colegas ativistas farão "de tudo" em seu poder para garantir que tais crimes sejam punidos. "Não vou desistir desta causa até a morte."
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