Fonte: Euro News
Em Calais, de manhã, o cenário é idêntico ao de tantos outros dias. Os campos de migrantes são evacuados pela polícia francesa. Na cidade, permancem pessoas do Iraque, do Irão, do Afeganistão, da Síria e de alguns países africanos.
A coordenadora dos Observadores de Direitos Humanos, Clara Houin, conta que "a polícia está a levar a cabo uma operação semelhante à que acontece todos os dias. O que eles fazem é pedir aos requerentes de asilo que desloquem as tendas apenas alguns metros e, se as pessoas não estiverem lá, levam-lhes os pertences, as tendas, objetos pessoais, telefones, roupas e, às vezes, até os documentos. Faz parte de uma abordagem política impedir a criação de campos, para evitar uma grande" selva", como a de Calais em 2015."
Para muitos migrantes, o Reino Unido continua a ser o destino de sonho, uma terra de oportunidades, onde podem falar inglês e unir-se a amigos e familiares.
A polícia francesa investe em criar desconforto, mas em Calais, os migrantes permanecem determinados.
“Nós temos de ficar aqui. Queremos apenas que o governo britânico e o governo francês parem, por favor, de perturbar as pessoas aqui”, apela um dos homens, que pede para não ser identificado.
A atividade policial, uma segurança portuária mais apertada e o Brexit são três fatores que têm contribuído para o aumento do uso de pequenas embarcações na travessia do canal. São também uma forma mais barata e mais eficaz de chegar à outra margem.
"Quando os governos de França e do Reino Unido não nos deixam ir de camião, temos de ir de barco. É perigoso para nós, mas vamos fazê-lo. Como eu, em breve. Quando tivermos um barco, vamos de barco", explica o migrante.
Nas primeiras 48 horas de fevereiro, as equipas britânicas de resgate apanharam mais de 200 migrantes no mar, entre eles, várias crianças.
No ano passado, as autoridades francesas abordaram mais de 2700 pessoas que tentavam atravessar o Canal, um número 17 vezes superior ao de 2016.
Dos mais de 1800 migrantes que chegaram às costas britânicas em 2019, 125 foram enviados para outros países europeus.
Raymond Randoux vive perto de uma praia nos arredores de Calais há quase 60 anos. Diz nunca ter visto por ali migrantes. Até agora.
"Eles estavam noutros sítios, onde havia acampamentos, foram criados espaços para eles que depois fecharam. Agora, estão a vir para cá".
Para o habitante local, não há grande margem para dúvidas de que a origem do tráfico está no Reino Unido.
"A maioria dos traficantes vem de Inglaterra com os barcos em camiões. Acho que os insuflam quando chegam aqui, com uma bomba, porque caso contrário, se cruzassem a água com eles, com certeza seriam vistos. A maior parte vem de lá", afirma.
No lado oposto do canal, Andy Roberts, antigo responsável da guarda costeira, teme uma grande tragédia, causada pela ameaça fatal que o frio pode ser.
"Estes barcos não aparecem aqui com um navegador ou um timoneiro. Eles foram apenas lançados ao mar e ficaram por conta própria. Houve duas ou três mortes registadas, mas, um dia, vai acontecer uma enorme catástrofe",alerta.
A área marítima entre França e o Reino Unido, conhecida como o Estreito de Dover, é o canal de navegação mais movimentado do mundo. Os migrantes sabem que só precisam de entrar em águas britânicas.
Andy Roberts explica "que eles se recusam a ser resgatados pelas autoridades francesas quando estão na água, e depois torna-se muito perigoso resgatar alguém que se recusa a ser resgatado". A recusa faz parte de uma estratégia para chegarem onde sempre sonharam. "Eles entram em águas britânicas e passa a caber ao governo do Reino Unido a responsabilidade de coordenar a busca e resgate de pessoas que dizem estar em perigo". A partir do momento em que são resgatados, as autoridades britânicas têm o dever de os levar para o Reino Unido, onde já podem pedir asilo.
Quando as autoridades francesas demoliram a "selva" de Calais, em 2016, dispersaram um grande número de pessoas.
Agora, a menos de 50 quilómetros, perto de Dunquerque, centenas de migrantes vivem num armazém abandonado frio e imundo.
Coline Slotala, da Organização Não-Governamental (ONG) visita diariamente o acampamento improvisado, sabe como o espaço se divide entre uma área para famílias e outra para homens solteiros e como viver em condições tão severas e degradantes pode ser perigoso. Há várias crianças pequenas entre os migrantes que ali residem. No total, acredita, podem estar ali a viver 800 pessoas. O sentimento ainda é de incredulidade.
"Não consigo entender o que aconteceu aqui. Venho quase todos os dias e não entendo por que é que isto acontece em França", lamenta.
Quem passa os dias naquelas tendas, vive sem eletricidade, nem água, ou instalações sanitárias. Falta tudo no acampamento, menos esperança.
Um migrante no anonimato conta que já foi apanhado duas vezes a tentar ir de barco para o Reino Unido. Mas quando é questionado sobre se tentaria mais uma vez, um "Talvez, talvez..." soa quase afirmativo.
A travessia, revela, fica por umas duas mil libras (quase dois mil e quatrocentos euros), mas o valor pode subir para as três mil libras (quase três mil e seiscentos euros), durante o inverno.
O governo britânico diz estar a trabalhar em estreita colaboração com França e a Bélgica para combater as travessias ilegais, através de mais equipamentos de detecção e drones, e que a maioria dos migrantes está a ser travada.
Muitos dos jovens requerentes de asilo que entram no Reino Unido chegam sozinhos ao país.
Em Kent, uma instituição de solidariedade está a ajudá-los com o inglês e aptidões para a vida. Entre eles, está um homem do Afeganistão, que entrou no Reino Unido por camião.
"Se eu estivesse no meu país, já teria morrido, eu sei disso. E não, não estou realmente arrependido, porque tenho uma boa vida no Reino Unido e estou muito feliz", confessa.
Este homem, tal como outros jovens, chegaram no meio de uma onda anti-imigração. O sentimento de que o Reino Unido perdeu o controlo das fronteiras deu votos ao Brexit e está a pressionar o governo britânico a enviar de volta mais pessoas sem documentos para viver no país.
Para Bridget Chapman, da Rede de Ação para Refugiados em Kent, a deportação, tal como a entrada de migrantes no Reino Unido, não deveria ser cega e até tem uma proposta para solucionar o problema: "acho que, nos sítios onde as pessoas tiverem bons argumentos para pedir asilo, precisam de ter oportunidade para fazê-lo, no lado francês do Canal. Depois já podem ter um processo e ser autorizadas a fazer a viagem de maneira segura e legal. Não estamos a falar de abrir as comportas, mas sim de parar o comércio dos traficantes, de um dia para o outro".
No final de contas, Bridget Chapman acredita ser necessário haver mais justiça e respeito para com os milhares de pessoas que vão continuar a tentar ter uma vida melhor. "Não podemos é manter uma situação em que pessoas têm pedidos de asilo válidos e acabam por arriscar a vida em botes na via marítima mais movimentada do mundo".
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