O mundo ficou estupefato diante da intervenção russa na Crimeia. Mas deveria? O presidente da Rússia, Vladimir Putin, nunca fez segredo sobre sua intenção de restaurar o poder de seu país. O difícil, agora, é prever até onde Moscou conseguirá chegar.
Em 16 de agosto de 1999, o Parlamento russo (Duma) aprovou a candidatura de um primeiro-ministro. Os congressistas ouviram seu discurso, lhe fizeram algumas perguntas e o confirmaram no cargo.Seria o 5º premiê do presidente Boris Yeltsin em 16 meses, o que levou um congressista a errar o nome do novo ocupante do cargo. O mundo prestou pouca atenção a seu discurso. A expectativa era de que ele liderasse o governo russo por apenas alguns meses.
Mas esse homem era o ex-oficial da KGB Vladimir Putin, e hoje ele está no comando do país mais amplo do mundo - como presidente ou premiê - desde então.
O que poucos perceberam em 1999 é que seu discurso da época ditaria os rumos de todos os seus atos e planos para redefinir um país que estava à beira do colapso.
Situação crítica
Um ano antes, a Rússia havia declarado a moratória de sua dívida, os salários de servidores estavam atrasados, a infraestrutura básica estava desabando. Os ativos mais importantes do país pertenciam a "oligarcas" bem relacionados, que comandavam o país como se fosse deles.
Yeltsin, por sua vez, era um bebedor incorrigível de saúde frágil. A situação era desesperadora, mas Putin tinha um plano.
"Não posso, neste discurso, abranger todas as tarefas diante do governo. Mas tenho certeza de algo: nenhuma dessas tarefas pode ser concretizada sem a imposição da ordem e da disciplina no país, sem fortalecer a cadeia (de comando) vertical", ele disse aos parlamentares.
Putin havia vivido os anos dourados da União Soviética, após seu incrível triunfo na Segunda Guerra. Sputnik, a bomba de hidrogênio, a cadela Laika, Yuri Gagarin eram todos provas da criatividade russa. Vitórias na Hungria em 1956 e na Tchecoslováquia em 1968 mostravam a força soviética, em um período de estabilidade, prosperidade e respeito diante do mundo.
Quando Putin falou ao Duma em 1999, seu país era outro - e menos respeitado. Ele falava como um homem que ressentia certas perdas.
"A integridade territorial da Rússia não está sujeita a negociações. (...) Tomaremos ações duras contra qualquer um que viole nossa integridade territorial. A Rússia tem sido um grande poder há séculos, e continua sendo. Sempre teve e ainda tem áreas de legítimas de interesse no exterior, em antigas terras soviéticas e além. Não devemos baixar nossa guarda, nem deixar que nossa opinião seja ignorada."
Putin não falou explicitamente, mas estava claramente aborrecido com o fracasso russo em impedir que a Otan (aliança militar ocidental) expulsasse as tropas sérvias (aliadas russas) de Kosovo alguns meses antes.Sua política doméstica previa restaurar a estabilidade, pôr fim ao que chamava de "revoluções" que haviam deixado a Rússia de joelhos e reconquistar o espaço do país no cenário internacional. E isso é o que direciona seu governo desde então. Se ele tivesse sido ouvido na época, suas ações não causariam surpresa hoje.
Chechênia
O início de sua campanha foi na Chechênia, símbolo do colapso russo. Os chechenos haviam superado Yeltsin e avançado em sua independência autodeclarada, mas essa acabou sendo uma vitória amarga. A guerra devastou o povo, a economia e a infraestrutura chechenos.
Quando Putin assumiu no lugar de Yeltsin, a taxa de aprovação do até então desconhecido premiê era de 70%. E pouco caiu desde então.
Em 2000, os militares russos tomaram a capital chechena, Grozni, e assumiram o controle de 80% do território. Putin acabou colocando a república sob administração direta de seu governo.
Defensores de direitos humanos e governos ocidentais acusaram Putin de desrespeito a leis internacionais em sua caçada a opositores chechenos. Mas isso não afetou sua popularidade. O presidente havia iniciado sua missão de restaurar o prestígio russo.
Em casa, ele avançou contra os mais poderosos oligarcas russos. Em 2003, a polícia prendeu Mikhail Khodorkovsky, o homem mais rico do país, cujo império petrolífero foi desmembrado e em parte estatizado. A medida foi vista por muitos como a construção de um império autoritário.
Nas eleições do mesmo ano, os aliados de Putin obtiveram dois terços do Duma, em pleito questionado por observadores.
Em apenas quatro anos, Putin havia conquistado a Chechênia, tomado controle da imprensa e dos oligarcas e ganho um Parlamento que faria o que ele quisesse, além de ter mostrado que a Rússia teria uma voz ativa em temas internacionais.
"Ele é um nacionalista, no sentido federal russo, e não étnico da palavra. Acho que essa é sua maior força motriz, mais do que a fome de poder ou ambições pessoais", opina Dmitry Linnik, chefe do escritório londrino da rádio Voice of Russia.
Nem todos concordam. "Acho que ele tomou uma série de decisões, bem racionais de sua perspectiva pessoal, (de forma) que esse tipo de regime autocrático lhe dê o máximo de poder e riqueza", afirma Chrystia Freeland, que chefiava a sucursal russa do jornal Financial Timesquando o presidente ascendeu ao poder.
Ideologia
Putin também restaurou símbolos soviéticos, como hinos e emblemas, e pré-soviéticos, como a Igreja Ortodoxa Russa.
Essa tendência rumo a um conservadorismo próprio da Rússia se acelerou após a onda de protestos populares contra aparentes fraudes eleitorais em 2011-12, que distanciou Putin dos liberais russos. Um de seus ideólogos favoritos é Vladimir Yakunin, que disse em entrevista recente que a Rússia "não está entre a Europa e a Ásia. Elas é que estão a oeste e a leste da Rússia. Não somos uma ponte entre eles, mas sim um espaço civilizatório separado".
Na semana passada, Yakunin foi colocado na lista de pessoas sancionadas pelos EUA (por fazer parte do "círculo íntimo da liderança russa"), após a anexação da Crimeia.
A ideia de a Rússia ser separada mas igual ao Ocidente é conveniente, por permitir que o Kremlin rejeite a crítica ocidental a suas eleições, Poder Judiciário e política externa.
Muitos dos amigos de Putin, ainda que desprezem a política, a economia, os valores e as estruturas ocidentais, são muito atraídos por seu conforto. Os dois filhos de Yakunin vivem na Europa Ocidental (Inglaterra e Suíça).
Alexei Navalny, ativista anticorrupção, acusa Yakunin de construir para si um palácio nos arredores de Moscou usando insumos importados - algo estranho para um homem que defende uma economia russa independente do Ocidente.
O próprio Putin defendeu princípios que depois abandonou quando se tornaram inconvenientes. Na invasão americana ao Iraque, em 2003, ele fez uma defesa da lei internacional, que se opunha a uma invasão sem o apoio da ONU. Mas em 2008 ele enviou tropas à Geórgia sem sequer fingir que consultara o Conselho de Segurança.
No ano passado, uma intervenção à Síria estava fora de cogitação. Neste ano, uma intervenção na Ucrânia é justificada e legítima.
Pode ser que princípios nunca tenham sido o cerne do debate - o objetivo de Putin sempre foi maximizar o poder russo.
Servidores
Não é fácil redesenhar um país por conta própria, e Putin tem usado o apoio de um grupo crucial da sociedade russa. Ao mesmo tempo em que avançou contra a imprensa independente, contra empresários e políticos, ele se apoiou em autoridades estatais para garantir que suas ideias fossem implementadas.
Essas autoridades têm sido bem recompensadas: o salário de oficiais sêniores subiu 20% no ano passado, quatro vezes mais que o orçamento geral.
Na semana passada, o Ministério do Interior informou que a propina paga, em média, pelos russos dobrou em 2013, para US$ 4 mil. A Transparência Internacional coloca a Rússia no 127º lugar em seu ranking de percepção de corrupção, junto ao Mali e Paquistão.
"Putin destruiu todas as fontes independentes de poder na Rússia. Ele só pode se apoiar na burocracia e deve alimentá-la para garantir sua lealdade", afirma o britânico Ben Judah, autor de Fragile Empire (Império Frágil, em tradução livre), sobre a Rússia de Putin.
"Em algum momento o dinheiro vai acabar, e ele se verá na mesma posição que líderes soviéticos no final dos anos 1980, forçados a enfrentar crises políticas e econômicas enquanto tentavam manter a união do país. Ele é forte hoje, mas o Kremlin se sustenta em algo que a Rússia não controla: o preço do petróleo."
Riscos
Putin foi bem-sucedido em reconstruir uma versão do país de sua infância, que age de forma independente no mundo e no qual a dissidência é controlada antes de desafiar o Kremlin. Mas isso é uma faca de dois gumes, já que a URSS entrou em colapso - e sua recriação significa que a Rússia corre o mesmo risco.
Para o dissidente exilado Vladimir Bukovsky, Putin é genuíno quando diz que a desintegração da União Soviética foi uma "catástrofe geopolítica".
"Ele não acha que esse colapso estava predeterminado, portanto acredita que sua missão é restaurar o sistema soviético", opina.
Como oficial de patente intermediária da KGB que amava a URSS, Putin não tinha a mesma perspectiva dos oficiais líderes, que sabiam que a União Soviética desabou com o peso de sua própria ineficiência, mais do que por uma conspiração ocidental, segue Bukovsky.
"Isso faz com que Putin repita os mesmos erros. Ele quer que o país inteiro seja controlado por uma só pessoa no Kremlin."
A decisão do presidente de invadir a Crimeia foi tomada de modo rápido e impulsivo, por um pequeno grupo de aliados. Isso significa que Putin não tem quem o alerte das consequências de longo prazo de seus atos. E, até que descubra isso por si só, vai seguir no caminho atual.
Isso significa também que as relações com o Ocidente seguirão sendo incômodas, sobretudo em áreas geopolíticas que ele considera de "interesses legítimos".
Mas não podemos dizer que não fomos alertados quanto a isso.
*Oliver Bullough é jornalista e editor de Cáucaso do Institute of War and Peace Reporting
fonte: bbc brasil
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domingo, 30 de março de 2014
Como Putin está tentando reconstruir a URSS
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