FONTE: A REFERÊNCIA
O início do massacre de Srebrenica, na Bósnia, onde oito mil muçulmanos foram mortos por forças sérvias, completou 25 anos no último sábado (11) e tornou-se célebre por acelerar mudanças nas missões de paz da ONU (Organização das Nações Unidas).
Na avaliação do professor e pesquisador Kai Michael Kenkel, da PUC-Rio (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro), o massacre foi o último de uma sequência de erros das missões ao longo dos anos 1990.
Naquele junho de 1995, a pequena cidade de Srebrenica, no leste da atual Bósnia e Herzegovina, era considerada uma “zona segura” pela missão da Uniprofor, ativa entre 1992 e 1995, durante a guerra civil após a dissolução da antiga Iugoslávia.
Quando os soldados das forças sérvias-bósnias, lideradas por Ratko Mladic –hoje condenado à prisão perpétua – cercaram a cidade, os 370 soldados holandeses não impediram nem a tomada nem a matança, que se estendeu até 22 de julho.
Na última quinta (9), o secretário-geral da ONU António Guterres lembrou as vítimas do massacre. “Como disse [seu antecessor] Kofi Annan, essa falha ‘vai assombrar nossa história para sempre’. Confrontar esse passado é um passo vital para reconstruir a confiança”, afirmou.
Antes de Srebrenica, maior carnificina na Europa desde a II Guerra, a ONU já carregava outros dois casos de fracasso recentes: a Somália, em 1993, e Ruanda, em 1994.
Na Somália, a meta era monitorar o cessar-fogo após a guerra civil iniciada em 1991. Não houve pacificação mínima, para auxílio humanitário, nem desarmamento das diferentes facções. Em Ruanda, a ONU não foi capaz de impedir o genocídio de 800 mil tutsis em pouco mais de três meses.
Os sucessivos fracassos das missões ensejaram um estudo que as reformulasse, o chamado Relatório Brahimi, de 1999. Desde então, houve aumento no financiamento e nos compromissos assumidos por nações participantes. Hoje, há 13 missões em curso.
Kenkel, especialista da PUC-Rio que estuda as missões de paz da ONU, conversou com A Referência sobre as lições tiradas dos episódios.
Desde a criação dessas missões de paz, em 1948, quais foram as principais lições tiradas dessas experiências?
A partir dos anos 1980, a ONU passou a fazer mais do que simples interposição e monitoramento, e começou a entregar ajuda humanitária e tentar proteger e repatriar refugiados.
Com o tempo, isso criou uma brecha entre as capacidades das missões, em termos de recursos e em termos de uso da força. Entre os exemplos estão Ruanda, Srebrenica, na Bósnia, e Somália.
Depois desses episódios, a ONU aumentou o uso da força e, depois, passa a apoiar o andamento dos processos pós-conflito por meio de medidas econômicas, sociais e sobretudo em processos eleitorais. Essas práticas sempre visavam o estabelecimento de um padrão liberal, influenciado pelo modelo ocidental.
Agora estamos na fase da “estabilização”, que reza menos pelo bem-estar da população local e mais pelos interesses dos Estados ocidentais no combate ao terrorismo e ao extremismo, sobretudo islâmico.
A lição é que às vezes, a força pode ser necessária, mas sozinha não resolve o problema. É preciso ter um processo político em primeiro plano, e com foco nos interesses da população local, não dos países doadores.
Quais são os principais eventos, nas missões ou no próprio funcionamento da ONU, que ensejaram mudanças na estruturação dessas operações de paz?
Os principais eventos que geraram mudanças foram os fracassos dos anos 1990. A ONU nesse sentido é um pouco como os bombeiros: você só ouve falar dela quando não consegue fazer bem seu trabalho. Quando tudo vai como deve, ninguém fala.
Temos então uma falha na prevenção ou atenuação do genocídio em Ruanda, em 1994. Naquele momento havia um africano, [o ganês] Kofi Annan, na chefia do Departamento de Operações de Missões de Paz. Ele se esforçou muito para adaptar a atuação da ONU de modo a pôr fim no conflito nos Bálcãs. Mas, num país africano, não consentiu em desviar um centímetro do padrão de não usar a força e apenas observar.
Já na Bósnia, em Srebrenica, temos uma “zona segura” da ONU, sob cuidado de tropas neerlandesas, invadida por forças sérvias. Ali, cometeram um massacre contra muçulmanos, colocando os sobreviventes em locais que só poderiam ser chamados de campos de concentração.
Finalmente, na Somália temos outra situação de fracasso, devido à desintegração da situação humanitária.
Qual o impacto de casos como os genocídios em Ruanda e na Bósnia no debate das funções e obrigações dessas tropas em área de conflito?
O impacto foi grande, embora sempre com a típica demora da ONU em responder e institucionalizar o procedimento.
Foi aumentado, e muito, o uso da força para proteger civis. Passou-se a apostar muito na prevenção e investiu-se muito mais esforço em construir e apoiar processos políticos para salvaguardar a vida e os direitos humanos.
A ONU percorreu um enorme processo de aprendizagem nas últimas duas décadas, e espero que essa virada para um processo de “estabilização”, como expliquei antes, não coloque esses avanços em perigo.
Quando a Holanda foi parcialmente responsabilizada pelo massacre em Srebrenica, alguns especialistas afirmaram que a condenação poderia desestimular o envio de novas tropas para áreas de conflito. Como o senhor vê essa avaliação?
Acho que há um recuo dos países ocidentais das operações de paz da ONU em geral, depois das guerras no Iraque [a partir de 2003] e no Afeganistão [a partir de 2001]. Há mais medo de baixas, mas também vemos o uso das operações como esforço para projetar uma certa imagem, como foi o caso da liderança do Brasil no Haiti [a partir de 2004]. Mas, quando algo dá errado na missão, o apoio evapora rapidamente.
Dito isso, não acredito que, no caso da Holanda, Srebrenica gerou um recuo. O país se engajou muito nas questões de intervenção para fortalecer as ferramentas da comunidade internacional.
Qual a importância das missões da paz hoje, nesse mundo onde as grandes potências vem rejeitando as soluções multilaterais?
Continuam sendo uma ferramenta de fundamental importância. São a única forma de intervenção universalmente legitimada e continuam em grande medida sendo o exemplo de intervenções.
Com todas as suas mazelas, as operações têm foco no bem-estar das populações locais, em vez de interesses geopolíticos, como no caso de intervenções dos EUA ou da Rússia.
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